Supressio e Surrectio: a efetividade da boa-fé objetiva no tempo
- Geovane Ferreira Pires
- 13 de jun.
- 4 min de leitura
Atualizado: 7 de jul.
Apesar de amplamente conhecidas na teoria, os institutos supressio e surrectio ainda são pouco aplicados na prática contenciosa, o que representa, muitas vezes, uma oportunidade desperdiçada na construção de teses mais sólidas e eficazes em favor dos clientes.
Ambas as figuras decorrem da cláusula geral da boa-fé objetiva, prevista no artigo 422 do Código Civil, e funcionam como instrumentos de limitação ou constituição de direitos em razão do comportamento das partes ao longo do tempo.
Os dois lados da mesma moeda
A doutrina[1] costuma tratá-las como faces opostas de uma mesma dinâmica jurídica, o que pode ser compreendido com a seguinte definição:
Supressio ocorre quando o titular de um direito deixa de exercê-lo durante período prolongado, gerando na outra parte a legítima expectativa de que aquele direito não mais será exigido. O exercício tardio, então, se torna abusivo.
Surrectio ao contrário, é o surgimento de um direito para a parte contrária, com base em comportamentos reiterados e duradouros do titular do direito original, ainda que esse novo direito não estivesse expressamente previsto no contrato ou na lei.
Ambas atuam como mecanismos de equilíbrio contratual e proteção da confiança legítima, valorizando a estabilidade das relações jurídicas ao longo do tempo.
O tempo como elemento de transformação jurídica
Embora parte dos entendimentos aplicados atualmente sugira que a supressio se consolide após cerca de 10 anos, a jurisprudência brasileira tem sido pragmática, avaliando caso a caso, conforme a natureza do direito envolvido, a duração da omissão e os efeitos práticos sobre a expectativa das partes.
Não há, portanto, um prazo fixo ou legal mas sim a necessidade de um comportamento reiterado, omissivo ou comissivo, que altere a percepção legítima sobre o exercício de determinado direito.
Supressio e surrectio no direito condominial
Um dos campos mais ricos para aplicação das teorias da supressio e surrectio é o direito condominial, especialmente em casos de uso exclusivo de áreas comuns.
É certo que não se admite usucapião sobre área comum, dado que não há individualização e registro da propriedade que permita sua apropriação. Contudo, a utilização exclusiva e prolongada de uma área comum por um condômino, sem oposição do condomínio, pode gerar um direito de uso exclusivo protegido pela supressio/surrectio.
A jurisprudência tem reconhecido, nesses casos, a consolidação do uso individual com base na boa-fé objetiva e no princípio da confiança legítima, ainda que o domínio continue coletivo.
Exemplo prático:
Um condômino utiliza com exclusividade, por 15 anos, uma área de jardim contígua à sua unidade, com ciência de todos e sem qualquer oposição. O condomínio, então, após esse longo período de uso exclusivo, decide retomar o espaço. Ocorre que a omissão durante anos pode caracterizar o desinteresse do condomínio quanto ao uso da referida área, o que possibilita a aplicação da supressio. E, sob o olhar do condômino, há a surrectio decorrente da expectativa de continuidade do uso exclusivo da área, o que constitui um direito de uso consolidado.
Importante destacar que a propriedade da área comum tratada no exemplo acima continuará a ser do condomínio, posto que não seria possível sua individualização formal. Contundo, no que se refere ao uso exclusivo, ou seja, a posse sobre a área, os institutos supressio e surrectio originam um novo direito, no sentido de assegurar a quem exerceu a exclusividade do uso sem qualquer oposição ao longo de anos, de que poderá continuar a exercê-la.
E quanto às áreas públicas?
A provocação é válida: se não se pode usucapir bem público, seria possível proteger o uso individualizado de uma área pública pela via da supressio ou da surrectio?
Embora a resposta atual da jurisprudência seja negativa, por força do princípio da indisponibilidade do interesse público, a discussão não é absurda. Poderia haver situações excepcionais em que o Poder Público, por décadas, permite ou até reconhece determinado uso exclusivo sem apresentar qualquer oposição, e com manifestações de anuência indireta.
Seria, então, possível discutir uma expectativa legítima de manutenção daquele uso, ainda que não configure domínio? A resposta exige prudência. Mas é possível vislumbrar, em contextos urbanísticos e possessórios, que essas teorias ganhem força como instrumento de defesa contra a descontinuidade repentina de usos tolerados pelo próprio Estado, especialmente quando esses usos estejam ligados à função social da posse ou à dignidade da pessoa humana.
Conclusão
Supressio e surrectio não são apenas figuras doutrinárias elegantes, são instrumentos jurídicos práticos, eficazes e muitas vezes decisivos. A advocacia estratégica precisa estar atenta à sua aplicação, sobretudo em disputas em que o tempo, o comportamento reiterado das partes e a confiança mútua sejam elementos centrais.
Ignorá-las, em muitos casos, é ignorar a própria essência da boa-fé objetiva, e deixar de oferecer aos clientes uma defesa ou uma construção jurídica mais robusta e aderente à realidade.
Belo Horizonte, 13 de junho de 2025.
[1] CÔRTES NETO, Alberto Moreira. A aplicação das teorias da supressio e surrectio e a tutela ao princípio da confiança nas relações jurídicas. Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – EMERJ, Rio de Janeiro, 2011.
Geovane Ferreira Pires
Advogado especialista em Direito Imobiliário
Membro da Comissão de Direito Imobiliário da OAB/MG
Membro da Associação Mineira dos Advogados do Direito Imobiliário - AMADI
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